Até que uma parede vos separe...
Eu tinha 10 anos de idade
outra vez quando entrei naquela sala... Suja, um colchão encardido e sem lençol
encostado na parede, do outro lado um fogão velho que das 4 bocas só funcionava
uma, duas talvez. Recordei-me da assistente social, fazendo as visitas de
praxe, identificando em nós doenças causadas pela urina de ratos, ratos
enormes... Naquela casa velha eles eram maioria... E era tudo que o salário do
pai dava pra pagar, diga-se de passagem, o salário de seus dois empregos...
Curitiba era fria naquela época, mais que agora, me lembro dele levantando na
madrugada gelada, lembro-me da camisa e da blusa de uniforme, azuis, lembro-me
do cheiro dele, nem preciso me esforçar muito... Meu pai sempre teve um cheiro
só dele... Eu seria capaz de reconhecer dentre um milhão. Não era um cheiro
gostoso, era meio tinta e suor, às vezes graxa...
A casa velha de madeira era
enorme, mas tinha apenas dois quartos, eu dividia com o irmão do meio e com as
máquinas da mamãe... Ela virava as noites costurando, e aquele quarto também
tinha um cheiro característico... De tecido e pó... Eu não me importava com os ratos, com a
pobreza, com a falta da presença dos meus pais... A cerejeira no quintal e a
fábrica abandonada no fundo supriam todas as nossas necessidades infantis...
Aos 10 anos eu andava sozinha na rua com os irmãos menores, levava-os à escola,
atravessávamos as ruas movimentadas fazendo firula, nem se falava em
violência... Vez ou outra desaparecia uma criança, geralmente nos mercados ou
shoppings, não tínhamos dinheiro pra frequentar esses lugares.
Os anos foram passando e a
pobreza continuava a mesma, aos 13 eu adoraria ter um par de tênis ... Então, depois a vida tornou-se
melhor, não vivíamos mais em casa de chão batido, tínhamos até chuveiro em
casa, veja só! A essa altura já havíamos mudado pra um não sei que número de
cidades e casas diferentes, eu não me lembro de ver meus pais desistirem...
Desanimavam e se apegavam numa fé que eu nunca soube bem de onde vinha,
tentavam outra vez, de outras formas, algumas vezes em outros lugares... Talvez
venha daí o meu desapego com tudo, sempre fui um pouco (muito) cigana...
Cresci, o tempo passou e tudo
se tornou melhor, não menos dificultoso, mas melhor... A casa agora era
própria, meu pai tornou-se um avô bobão... Nunca consegui frear os exageros
dele, porque ele sempre me fitava com os olhos e dizia: “Quando você era
pequena eu não pude te dar, agora posso”... Eu tenho um orgulho imenso do meu
pai...
Estava do lado de cá da
parede quando o ouvi chegar... Fui até lá e o que vi me transportaram novamente
aos 12 anos, só que agora nada mais unia meus pais, e além de tudo o que os
separava havia uma parede de madeira barata, não servia nem pra separar os
cheiros e ruídos, de um lado eu podia sentir o cheiro da comida do outro...
Podia ouvir também as ofensas trocadas...
Divisão de bens... Inversão de valores... Fogo cruzado, festival
de ofensas descabidas... Quase 30 anos de uma vida partilhada, duramente
partilhada, e tudo se resume em partilha de bens, de dividas...
No carro, de volta pra casa,
eu tenho novamente 27 anos... Eu tenho
vontade de chorar... E eu não tenho palavras pra descrever aquele cenário
psicológico...
De volta pra casa eu me sinto
naquela casa de madeira velha, mas agora eu sinto medo dos ratos, agora eu
sinto a falta dos meus pais, eles não estão trabalhando... E eu já não tenho mais idade pra subir na
cerejeira e me esconder...
Lindo texto...
ResponderExcluirSem palavras pra descrever o quanto isso dói em nós!
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